quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Valsa suburbana

No muro a hera,
se calcinada,
se regenera,

e flore tão ela,
tão rente ao que era,
como se não houvesse

na hera a morte,
na morte
a primavera.
Os mortos

Os mortos não tomam chá
nem sentam
ao piano esquecido aberto.

Os mortos não velam
nossas horas debruçadas sobre suas gavetas.
E, se interrogam fundamente do outro lado do espelho,sequer nos reconhecem.

Os mortos ficam mortos porque assim se concebem.
E há muito trocaram os porta-retratos
por outras formas, mais refinadas, de desprezo.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Dois sonetos de amor

Do amor antigo

Do amor antigo te direi somente
que foi antigo já quando não era
ainda amor, e, ainda amor, espera,
como um brinquedo desaparecido.

Dele não sei senão o que pressente
o antigo coração que lhe resiste,
e a quem parece exausto quando triste,
e triste (quando apenas renascido).

Ouço as palavras que me diz, e entanto
não te posso dizer se ainda as mereço,
nem sei, depois de ouvi-las, se as ouvi.

O amor antigo te darei, conquanto
não saiba se sou eu que o ofereço,
nem saiba se foi meu quando o vivi.


Uma teoria do centro

É que é do mar o azul, o movimento,
e é do fogo o frio azul do centro,
e é do espelho um outro espelho dentro,
e dentro da palavra o esquecimento.

É que é do ar a obrigação do vento,
e é do gato o salto, a indiferença,
e é do polígono a circunferência
como da morte cada pensamento.

É que é da cor a luz, da chama o vento
como da voz o arrependimento,
como do tempo ser um outro e o mesmo.

É que é do amor o fogo, o frio, e dentro
de seu espelho a combustão de um centro:
seu ser exato quando ainda a esmo.
Variações sobre o silêncio

O teu silêncio
encanta as sombras,
esfria a tarde,
proíbe as nuvens.

(E aquela fica
eternamente
na forma de um poodle)

*

Há um silêncio branco
se sorris,
um outro negro
se não falas.

(E aquele, azul
como uma chama,
de quando, súbito,
te calas.)

*
O teu silêncio é andrógino,
inconcluso,
como o vazio de antes dele,
como a suspeita de um silêncio
antes de tudo.


*
O teu silêncio está na tua forma
como a lua no mar,
como a margem no rio,
o quarto no espelho,
a geometria no espaço.

Como a curva
no vôo de um pássaro.
Voltas

Os teus olhos são tão negros
quanto uma lua que, ausente,
nega um segredo
ou o pressente.

Os teus olhos são tão negros
que são profundos, não densos,
e têm muito de cigarras,
de água, de esquecimento.

Os teus olhos são tão negros
quanto um quarto adormecido
onde despreza ou espreita
um gato, um morto, um crime.

Os teus olhos são tão negros
que neles nem há pupilas.
Só, no silêncio perfeito,
a obrigação de um centro.
Cemitério de pescadores da Taíba

Três cruzes em frente ao mar.
Três cruzes sem nomes nelas.
Três cruzes no cemitério
em que ninguém mais se enterra.

Três cruzes mirando o mar,
sem um braço duas delas,
sem cuidado de parente,
sem que as crianças as temam.

Três cruzes em frente ao mar
como três mastros sem vela,
vazias de vozes, de gestos,
vazias da morte nelas.

Menos mortas porque, nelas,
a morte cumpre seu mistério,
consumindo-se em seu centro,
como se cumpre uma estrela.

Ou as três como uma tela
abstrata, geométrica.
A morte mínima e bela:
mais linha do que objeto.

Ou as três como sinais,
padrões plantados na areia,
opondo ao céu a aventura
humana que as três encerram.

Três cruzes negras de sal
sobre uma duna pequena,
já quase que submersas:
três mortes que desconheço.

Um foi ao mar, virou o vento.
Outro foi faca, e de surpresa.
O outro sonhava, longevo,
sua cruz entre companheiras.

Três mortes multiplicando
com três cruzes indefesas
o sal da morte na tarde,
seu gosto de sol em mim mesmo.

Três cruzes em frente ao mar
que esperam, vigiam, secam.
E um gavião sobre elas
testando o ar ascendente.
As Ruínas

1

Quis um dia essa tarefa, a de projetar ruínas:
de começar uma coisa
como uma coisa termina.
Imaginou-as plantadas, como harpas, numa planície.
Vizinhas a coisa alguma, pois, se a uma outra vizinhas,
dela se entranham as ruínas.

E repetiu essa palavra, em tantas línguas traduziu-a,
até suspeitar-lhe a sombra, até dilatar-lhe os sinos,
até descobrir-lhe arestas, ordens, cicatrizes, até que, dentro da palavra,
soassem guerras suspensas, houvesse incêndios antigos.
Até que, dentro da palavra, a própria coisa ruísse.
E imaginou essa palavra mais do que a coisa em ruína.
E imaginou-a palavra depois de a coisa finda.
E imaginou-a num deserto, mais soprada do que erguida.

Queria suas ruínas inecessárias, daninhas,
a que os gatos viessem por um quase humano instinto.
Onde as sombras florescessem como florescem espinhos.

2

Porém ruínas de que
seriam puras ruínas?
Um templo, um anfiteatro
sugeriam simetrias, gestos, vozes, peregrinos.
Mesmo uma casa (a mais simples)
fecharia em suas linhas (por mais abstratas, partidas)
uma memória de vida.

Mesmo ainda um labirinto, em sua bárbara estesia,
implica sempre um caminho, exige monstros ou símbolos.
Um jardim exige um cão,
um anjo, um centro, um menino.
Mesmo um círculo inconcluso, um arco marca um limite
entre o que nasce e o que existe, entre o que foi e a ruína.

3

Queria que sua obra
fosse aquilo que restasse
de uma obra nunca erguida,
mas que não lhe fosse aquilo
que, depois de desossada,
eviscerada, seria.
Ou antes queria fosse
aquilo que quase e que vibra
na evidência da coisa (mais urgente que precisa).
Queria de sua obra
o silêncio de antes dela
e o de depois de ela finda
fundidos num só silêncio
como o do centro inumano
da morte e das sinfonias.

4

Passaram-se os anos, perderam-lhe a biografia,
mas corre sua notícia (como uma coisa daninha):
ninguém sabe se arquiteto, geômetra, músico, assassino.
Nas escolas (sem que a ensinem) floresce-lhe a disciplina
de começar uma coisa
como uma coisa termina.

A simultâneas planícies acorrem os peregrinos,
e são muitos os jardins em que lhe adivinham as ruínas.
Há quem as pressinta nas harpas da cordilheira longínqua.
Dizem os seixos suas tentativas,
e os desertos, sua obra (soprada mais do que erguida).
Há quem lhe credite da noite
o silêncio e as simetrias,
quem siga os gatos vadios em demanda das ruínas.

E repetiram-lhe a palavra, tantas línguas traduziram-na,
que há quem creia ela defina
aquilo que quase e que vibra
na evidência da coisa
cuja ausência a confirma.
De Sombras e Gatos

1. Negro

O único todo
de sombra compacta.
E todo ele
é movimento
e sempre anfíbia
sua passagem.

Como uma idéia
por entre coisas,
como uma coisa
entre palavras.

Sequer despreza
como outros gatos:
ao gato negro
basta o contraste
com qualquer sombra de realidade.

Mas, quando estaca,
(a pata erguida,
inconcluso o passo)
fagulha apenas
seu olho incriado.

Como uma idéia
por entre coisas,
como uma coisa
entre palavras,
como uma morte
dentro do Nada.

2. Siamês

Este flutua,
porque as sombras
que vai sorvendo
sobem-lhe só
até a antepata.

De resto é quase
um arquigato,
que evita o contato
da realidade.
Por isso despreza
qualquer paisagem,
e qualquer muro
lhe é impuro
às negras patas.

E, quando pára,
sua presença
flutua apenas.

Como uma idéia
pela metade.

Como uma coisa,
uma palavra
metade sombra,
metade gato.

3.Malhado

No gato malhado,
dito vira-lata,
a sombra invade,
milparte o gato.

Falta-lhe a linha
dorsal compacta
e o passo infalível
dos outros gatos;
falta-lhe a idéia
de contraparte:
nem bem é branca
ou negra metade
e ao todo é menor
que as manchas somadas.

É talvez, assimétrico,
quase o antigato
em seu claro-escuro
barroco, abstrato.

Não é a coisa,
mas as muitas falhas,
as muitas faltas
que lhe são inatas:
como uma idéia
despedaçada
numa palavra muitas palavras.

4. Persa

Seu branco passo
recusa à sombra
dessedentá-la,
porque despreza
qualquer caçada,
qualquer esforço,
assassinato.

Sonha um relevo
de almofadas
e presas súditas
de seu enfado.

Recusa o fogo
de seu contato
e mesmo os olhos
dos outros gatos.

Dorme em presença
da humanidade
o sono inato
das coisas fartas.

Mas, quando hesita
em levantar-se
(como um remorso
ou uma espada),
é inútil e exato.

Como uma coisa
antes da idéia,
como uma idéia
antes da palavra.
Crônica

Nenhuma lâmina corta mais que a do domingo:
que ela separa
o vento da palmeira, o sol de seu calor,
o carro de quem dentro,
o cão
de seu latido.

Nenhuma tão feroz, e tão exata,
e tão moral, que ela separa
o tédio do cansaço,
o prestes do irrecuperável,
o som da coisa que lhe é inata.

Nenhuma tão senhora, embora ainda antes de golpeada:
que ela constrange os objetos,
lhes ameaça o excesso e os conflagra.
E em que não há cortar
é onde mais se farta.