segunda-feira, 25 de agosto de 2008

As Ruínas

1

Quis um dia essa tarefa, a de projetar ruínas:
de começar uma coisa
como uma coisa termina.
Imaginou-as plantadas, como harpas, numa planície.
Vizinhas a coisa alguma, pois, se a uma outra vizinhas,
dela se entranham as ruínas.

E repetiu essa palavra, em tantas línguas traduziu-a,
até suspeitar-lhe a sombra, até dilatar-lhe os sinos,
até descobrir-lhe arestas, ordens, cicatrizes, até que, dentro da palavra,
soassem guerras suspensas, houvesse incêndios antigos.
Até que, dentro da palavra, a própria coisa ruísse.
E imaginou essa palavra mais do que a coisa em ruína.
E imaginou-a palavra depois de a coisa finda.
E imaginou-a num deserto, mais soprada do que erguida.

Queria suas ruínas inecessárias, daninhas,
a que os gatos viessem por um quase humano instinto.
Onde as sombras florescessem como florescem espinhos.

2

Porém ruínas de que
seriam puras ruínas?
Um templo, um anfiteatro
sugeriam simetrias, gestos, vozes, peregrinos.
Mesmo uma casa (a mais simples)
fecharia em suas linhas (por mais abstratas, partidas)
uma memória de vida.

Mesmo ainda um labirinto, em sua bárbara estesia,
implica sempre um caminho, exige monstros ou símbolos.
Um jardim exige um cão,
um anjo, um centro, um menino.
Mesmo um círculo inconcluso, um arco marca um limite
entre o que nasce e o que existe, entre o que foi e a ruína.

3

Queria que sua obra
fosse aquilo que restasse
de uma obra nunca erguida,
mas que não lhe fosse aquilo
que, depois de desossada,
eviscerada, seria.
Ou antes queria fosse
aquilo que quase e que vibra
na evidência da coisa (mais urgente que precisa).
Queria de sua obra
o silêncio de antes dela
e o de depois de ela finda
fundidos num só silêncio
como o do centro inumano
da morte e das sinfonias.

4

Passaram-se os anos, perderam-lhe a biografia,
mas corre sua notícia (como uma coisa daninha):
ninguém sabe se arquiteto, geômetra, músico, assassino.
Nas escolas (sem que a ensinem) floresce-lhe a disciplina
de começar uma coisa
como uma coisa termina.

A simultâneas planícies acorrem os peregrinos,
e são muitos os jardins em que lhe adivinham as ruínas.
Há quem as pressinta nas harpas da cordilheira longínqua.
Dizem os seixos suas tentativas,
e os desertos, sua obra (soprada mais do que erguida).
Há quem lhe credite da noite
o silêncio e as simetrias,
quem siga os gatos vadios em demanda das ruínas.

E repetiram-lhe a palavra, tantas línguas traduziram-na,
que há quem creia ela defina
aquilo que quase e que vibra
na evidência da coisa
cuja ausência a confirma.

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