quinta-feira, 29 de julho de 2010

Retorno

Por motivos de ordem pessoal, entre os quais a saúde, que não andou lá muito boa no ano passado, abandonei as postagens por quase um ano. Tornei ao blog quando do lançamento de meu segundo livro, mas não consegui, na época, seguir atualizando o conteúdo. Agora, mais por insistência de um grande amigo, o poeta português Victor Oliveira Mateus, volto a postar, e espero que com freqüência.

Prefácio de Os Acasos Persistentes   


Efemeridade e Permanência na Poesia de Cláudio Neves
   

            Neste novo livro de Cláudio Neves assumem particular relevância os conceitos de Amor e de Morte, que, no entanto, são submetidos aqui a uma abordagem cuidadosa e incomum na poesia ocidental. Logo nos dois versos iniciais do primeiro poema o poeta deixa-nos entrever que o amor de que irá falar se coloca em dois planos distintos, embora com zonas tangenciais e de possíveis permutas: aquele que “já foi/antes de ter sido,” (pág. 4), que é livre de objetos particulares e, em última instância, livre de si mesmo e um segundo nível onde o amor, por uma vivência concreta, se revela nos quotidianos gestos. Esta concepção remete-nos imediatamente para um solo matricial bem caro ao ocidente, embora, e como veremos, Cláudio Neves articule, de forma exímia, todo esse legado da tradição com aspectos de uma modernidade que são intrínsecos à sua arte poética. Os primeiros nomes que nos ocorrem são o de Empédocles e o de arché, substância dinâmica bem cara aos Jônicos, já que o Amor nesta obra de Cláudio Neves é incriado e subjacente a tudo, mas que, no entanto e num momento segundo “Dança num intervalo/de luz…” (pág. 4). O poeta insiste, em vários dos seus textos, nesta cisão originária que ocorre no seio do amor: “Apenas fora do tempo/o amor é possível,/mas apenas/em seu curso é que existe” (pág. 9); “O amor é isso:/o que escolhe ser,/à revelia de quem o habita” (pág. 17). Paralelamente a este nível do Amor, encontramos um outro de estatuto ontológico inferior – aquele que é vivenciado no quotidiano: “o teu amor desliga o som,/tira-me os óculos e o livro” (pág. 8). Perante esta visão dialógica e especular do amor conseguimos perceber as razões que levaram Cláudio Neves a optar por epígrafes e imagens que nos induzem jogos de reflexos e refrações: o olhar de um cão (cf. págs. 8, 19 e 22); o espelho (cf. págs. 9 e 31). Estes dois planos através dos quais o amor se nos apresenta perpassam todo o livro, o que nos conduz a uma nova dicotomia: a ordem da permanência e a da efemeridade: “Certas manhãs parece que sempre existiram/em outras somos nós que amanhecemos” (pág. 37); “Aquilo que prestes,/aquilo que quase,/os gestos inertes/vibrarão mais rentes,/tocarão mais leves,/sorverão mais lentos/a verdade quieta/de todo objeto” (pág. 28). Vemos, por conseguinte, que são inúmeros os versos e/ou os poemas em que se desenham não só os dois níveis do amor já referidos à saciedade, como também a alternância entre os estados de permanência e de transitoriedade. Consciente de que o amor vivido é, então, uma secundarização – ou até uma falha – no meio da totalidade amorosa, o poeta experiencia-o, por vezes, com sentimentos de carácter negativo: o “cínico silêncio” (pág. 18) e o desalento (cf. págs. 12 e 30). É importante enfatizar ainda o cuidado com que toda a imagética desta poesia é trabalhada e disso daremos aqui um só exemplo: a associação desalento/insuficiência do amor vivido aparece por duas vezes ligada à cor violeta, que na religiosidade cristã tem uma conotação bem definida: “o pensamento/assume um tom/de violeta.” (pág. 5); “Ficou-lhe a voz,/o aforismo/ferindo a tarde violeta” (pág. 15).

            A morte aparece, nesta obra de Cláudio Neves, geminada com o amor, sendo assim uma presença constante ao longo de todo este trabalho: “O Amor e a Morte/caminhavam juntos/num jardim fechado.” (pág. 24). Todavia ela não tem, para o poeta, uma conotação necessariamente negativa:

                        Na morte seremos
                        o que perdemos
                        o que já fomos
                        antes de sermos.
                        Apenas na morte
                        seremos
                        o que fomos,
                        quem fomos
                        antes de conhecê-la. (pág. 14)

            A Morte encontra-se, portanto, associada ao desmoronamento da efemeridade e das vivências do amor quotidiano e, consequentemente, à ascensão a esse Amor fonte de tudo. Voltamos assim a um outro item da matriz ocidental: esse morrer para o mundo tão evidenciado nas obras de Teresa de Ávila e de João da Cruz. Se a morte, neste livro, pode ocorrer a qualquer momento (cf. pág. 27), também a absolutização amorosa se pode fazer a qualquer instante, aliás, a morte no quotidiano e a eternização daquilo que verdadeiramente É, na poesia de Cláudio Neves, e aqui ao contrário da tradição ocidental, é feita a par da materialidade, do corpo, da sexualidade; se na tradição lírica os mais altos cumes têm sido conseguidos através da ausência da amada ou do amado (a sua morte, o seu afastamento geográfico, o desnível classista, o afeto não correspondido, etc.), nesta poesia a fusão com o Amor pleno pode ser conseguida, não sem uma ruptura, mas com uma assunção e transfiguração do amor quotidiano: “Tudo isso farei eterno,/se me confias teu corpo sem ruído,” (pág. 19); “E há certas noites, embora vulgares,/em cujo o centro omnipresente pressentimos/a combustão de Deus, a marcha dos heróis.” (pág. 37) – eis-nos chegados ao final de todo um ciclo dialéctico! Âmago de uma autêntica epifania: fusão no Amor originário; consumação de um périplo, onde Cláudio Neves retoma as imagens específicas de uma poesia de cariz metafísico: a figura do anjo (págs. 34 e 35), a problemática da ressurreição (págs. 32, 33 e 35) e, finalmente e à guisa de conclusão, essa ideia de que o deserto é susceptível de ser ultrapassado, mas apenas por esses heróis, que, “À mesa dos loucos” (pág. 35), insistem, quais ressurrectos seres numa amorosidade diária, firmando esse Amor que, primordial, tudo move.

            Outro aspecto quanto a nós fundamental nesta poesia é o modo como Cláudio Neves articula todo o domínio da modernidade poética, que desde o início percebemos ter, com uma súmula de processos formais provenientes da tradição. Este escorreito alcançar de um justo-meio entre as referidas duas instâncias, faz-nos lembrar três dos maiores poetas que, no séc. XX, escreveram igualmente em português: Vitorino Nemésio, Ruy Belo e David Mourão-Ferreira; também estes, embora com poéticas radicalmente distintas da presente, conseguiram esse equilíbrio entre o que no antigo urge preservar e aquilo que no moderno está para além das espúrias gangas de prestidigitações grosseiras e completamente apoéticas.

            Neste livro estamos frente, não a um versejar tradicional e anquilosado ao qual se acrescentou, de forma aleatória, pinceladas de atualidade, apenas para que tal conste, mas a uma poesia que, toda ela porejando modernidade, se encontra embutida de um formalismo que o poeta adotou visando duas finalidades complementares: uma maior apreensão do poema pelo seu leitor, logo, uma veemente recusa da passividade deste, e a conquista de uma harmonia e de uma musicalidade que pareciam já perdidas na poesia contemporânea; ousamos, por conseguinte, dizer que através destes procedimentos estilísticos o autor nos presenteou com uma escrita, que, vincadamente moderna, quando lida nos faz lembrar as pequenas grandes pérolas da poesia trovadoresca galaico-portuguesa e da do Cancioneiro de Garcia de Resende. Esta exemplar tríade modernidade/formalismo/harmonia consegue-a Cláudio Neves através de procedimentos como: anáforas (“alheia ao fato de ser sensata,/alheia às folhas que ela arrebata,/alheia às coisas”, pág. 5); subversão do esquema rimático tradicional (cf. as duas primeiras quadras do soneto da pág. 4); estruturas estróficas de tipo anafórico às quais adiciona rimas cruzadas (pág. 7); versificação de carácter assonante; extensas metáforas correntes que se espraiam ao longo dos poemas (cf. págs. 22 a 27 e págs. 32 a 35); jogos de palavras (exº seremos/sermos, pág. 14), muitas vezes articulados com anáforas (pág. 23); aspectos de continuidade poemática conseguidos através de repetições simples e/ou de anadiploses (págs. 5 e 6), etc. O excelente domínio do português bem como da tradição poética luso-brasileira chega ao ponto de levar Cláudio Neves a trazer para o campo da modernidade processos formais há muito postos de lado: o dobre (“saudade sem objecto,/objectos sem ruído,/tempo sem corrosão,” pág. 17); mordobre (pág. 14); mote ou tema (pág. 8). Porém, e aqui mais uma originalidade desta poesia, o poeta muitas vezes não segue fielmente esses esquemas versificatórios: acena-nos com eles, aqui e ali mostra-nos que os domina, mas logo os subverte, não para encenar um qualquer artifício gratuito e desinspirado bem ao gosto de certas escritas que começam a vislumbrar o início da sua queda, mas para que o intento de apropriação do real se intensifique e assim se consiga uma maior autenticidade, ao mesmo tempo que, nesta sua arte heterodoxa de desvelamento/ocultação, se implique o leitor de poesia com o sentido do que é mostrado e com a harmonia de um dizer que compromete esse mesmo leitor na dinâmica do fazer poético.

Victor Oliveira Mateus
Lisboa, 17 de abril de 2009 
1.

O amor já foi
antes de ter sido,
e, se incriado,
é entanto renascido.

É livre de objeto
(se o tem, logo o assassina)
e livre de si mesmo:
deus, nuvem, bailarina.

Dança num intervalo
de luz, palavra, sentido
ou noutro qualquer abismo:

como o de antes de um não,
como a pupila de um cão
numa manhã de domingo.
6

Apenas fora do tempo
o amor é possível,
mas apenas
em seu curso é que existe.

Habita-o como um rosto
o fundo de um espelho
e como um risco
sua superfície.
7

Que o amor não é. Será.
Nunca infinito,
mas infinitivo.

Não dura. É duração.
Depura o tempo
em força, direção, sentido.

Habita a areia à beira-mar
não como rastro,
mas como um passo erguido.
8

A morte talvez
não cesse o tempo
e os mortos
continuem envelhecendo,
concebam certezas,
mantenham manias.

A morte talvez
não cesse o tempo,
mas só o depure
de movimento.

E os mortos
continuem envelhecendo,
libertos, contudo,
dessa causalidade a que chamamos existência.
11

Na morte seremos
o que perdemos,
o que já fomos
antes de sermos.

Apenas na morte
seremos
o que somos,
quem fomos

antes de conhecê-la.

16

O cão que juntos vimos numa esquina.
O peixe que agonizava à nossa frente.
A onda na direção de nossas filhas,
a quem pedimos não quebrasse sobre elas.

O cacto que te comprei na feira
e que te faz sorrir
quando o entrego
ainda hoje nos meus pensamentos.

Tudo isso farei eterno,
se me confias teu corpo sem ruído,
se sufocas teu grito para que não nos ouçam
as crianças no quarto contíguo,
para que não descubra o tempo
o cão, a onda, o cacto,
o teu corpo jugulado e inconsentido.
19
(dois sonhos)

I

Às vezes lembrava, às vezes não.
Lembrava a casa entre as papoulas,
a casa branca, antiga, sem chão.

Nas noites de não, ela o visitava.

Lembrava às vezes que flutuara
no campo em torno e sobre um cão
de olhos vazados vertendo som.

Às vezes lembrava, às vezes não.
Lembrava a menina de short, descalça,
correndo na chuva em torno da casa.

Nas noites de não, ela o visitava.

Nas noites de não, ela o sonhava,
ele menino, ele e um cão
olhando juntos a enxurrada.

II

Lembrava às vezes, às vezes não.
Nas noites de não, ele a sonhava,
entrando molhada, afagando um cão.

Nas noites de não, ela o sonhava,
depois não lembrava, a não ser de um vão,
quente e oculto sob a antiga escada.

Às vezes lembrava, às vezes não,
senão que sentia, quando acordava
que flutuara, dissera um não.

Nas noites de não, se visitavam.

Os corpos trêmulos, sob a escada,
os corpos ungidos por aquela casa,
por aquele nada dos olhos de um cão.
20
(uma fábula)

I
O amor e a morte
caminhavam juntos
num jardim fechado.

No jardim cuidado
entre fícus, cactos
no fim de outro outono,

iam caminhando
o caminho até nada
dos bons caminhantes.

Quem de longe os visse
lhes trocava os nomes:
que o amor tinha barba

e a morte, duas tranças.

II
E a morte, descalça,
tão ruiva atirava
três pedras num lago,

às vezes girava
seus braços abertos
cobertos de sardas.

O amor não sorria
sorriso paterno,
até disfarçava

que ia a seu lado,
que ela girava,
que à revelia

talvez a gerara.


III
Não eram, se o foram,
Eros nem Tanatos,
iam desatentos,

sem mitologias,
sob um fim de outono,
sem outras palavras

que não as da chuva
testando o teclado
de uns poucos carvalhos,

e a tarde com sono,
o primeiro bocejo,
sob um azul sem nome

de profundos pássaros.


IV
“Sonhei com um cavalo”,
“sonhei com um vestido
que me apertava”,

“Ganhava um brinquedo,
um quebra-cabeça
de uma paisagem”.

Mais ruiva girava:
“Já leu sobre sonhos?”,
mas o amor calava.

E à vista de um homem
com um livro, num banco,
mais ruiva, voltou-se:

“Trouxestes a arma?”
22

As maçãs de resina sobre a mesa
habitam as manhãs,
combinam com a bandeja,
só existem às vezes.

As maçãs de resina não trazem
a lembrança da terra
e a nostalgia das mãos
das maçãs verdadeiras.

As maçãs de resina não esperam
quem as erga e gire e teste
se duas vogais vermelhas
cabem na sua frieza.

Das maçãs de resina, embora impassíveis,
embora silêncio,
ninguém dirá que amores
nem dores nem desejo.

Ninguém dirá que o que lhes falta
exige a urgente madureza
de todas as maçãs
que ainda não nasceram.
25
(Lázaro)

I

Às vezes lembrava,
às vezes não,
os nomes à mesa,
os nomes das coisas,
o gosto do pão.

Às vezes achava
que tinha sonhado
o frio, a caverna,
a brisa da treva,
a pedra rolada.

Às vezes pensava
que agora sonhava:
por isso que as falhas,
por isso os estranhos,
os tantos olhares.


II

Diziam as irmãs
(assim se anunciavam)
que a voz voltaria
(que voz não sabia),
não se preocupasse.

Disseram-lhe os sábios
que fora escolhido
para outra jornada
(e pouco entendia
tão fundas imagens).

Mas a voz que ouvira,
a que obedecera
alheio à vontade,
a que falta à mesa,
já não lhe falava.


III

Às vezes lembrava,
às  vezes não,
por que caminhara,
por que se afastara
das mesas, das casas.

Às vezes lembrava
da vaga jornada
ao deserto insone
que a cada alvorada
o pacificava.

Às vezes julgava
ouvi-lo falar,
chamar por seu nome.
Sonhava-se um anjo,
areia, luar.


IV

Às vezes lembrava,
às vezes não,
o nome deserto,
que nome tivera,
que nome chamar.

Cada vez mais sonha
um sonho em que, anjo,
caminha soberbo
entre esgares até
uma voz que o quer.

À mesa dos loucos
sorri complacente,
ouve histórias sem nexo
de um deus
e de um homem ressurrectos.